Figueiredo
Novato
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Assunto: Bernardo Tomás vol.1 Dom Mar 28, 2010 11:57 am |
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Espero que gostem...
Bernardo Tomás vol.I
Capítulo I Quando fecho os olhos sou o rapaz mais bonito do liceu e ao meu lado está a rapariga mais cobiçada do mundo. Tenho um bom carro e até já vivemos juntos num apartamento luxuoso que comprámos na zona mais cara da cidade. Na rua os olhares recaem sobre mim e ouço no burburinho de fundo o meu nome repetido vezes sem conta. Todos comentam como eu sou um caso apaixonante: músico, escritor e jogador de futebol. Acabei de publicar um livro de História que surpreendeu a comunidade universitária e a crítica especializada. Tudo com apenas dezassete anos…e com as pálpebras a impedir a entrada de luz. De olhos abertos tudo acontece de forma ligeiramente diferente e quase todos os dias se forma no meu pensamento um “BEM-VINDO AO MUNDO REAL!”, escrito mesmo assim com o Caps Lock ligado. Infelizmente tenho muitos dias reais, muitos dias em que tudo decorre da forma mais previsível possível. Esta é a história de um dia diferente.
18 De Setembro de 2009. Sexta-feira.
7h
“… Yes, it's a good day for singin' a song, And it’s a go...” O despertador. Desligo-o.
7h5m
“… Yes, it's a good day for singin' a song, And it's a good day for movin' along; Yes, it's a go…” O despertador volta a tocar. Desligo-o.
7h10m
“… Yes, it's a good day for singin' a song, And it's a good day for movin' along; Yes, it's a good day, how could anything be wrong, A good day from mor…”
O despertador insiste.
7h10m19s
Desligo-o novamente.
7h10m20s
O despertador desistiu.
7h10m21s
Adormeço.
7h30m
Ouço uma voz que me chama repetidamente. Espero que não seja a Peggy Lee no seu despertador colorido e sempre bem-disposto. Maldito. Sinto uns abanões. Não é o despertador. É pior. - Filho… tu és sempre, sempre o mesmo! – a minha mãe, que me tira do conforto da cama todos os dias - Eu quero ver, para o ano, quando fores para a faculdade quem te vai acordar…sai dessa cama, rápido! - Hã? - Bernardo Tomás são 7h30m! Rápido, sai… Quando ela diz “Bernardo Tomás” já sei que não me posso alargar muito mais. Tudo o que desejo neste momento é ficar aqui deitado de olhos fechados nem que seja por mais uns minutos. Mais uns minutos com a rapariga mais cobiçada do mundo. Não posso. Muito lentamente vou tirando um pé da cama, depois outro. Fico sentado. Algum tempo a ganhar coragem, mas não resisto ao chamar constante e apelativo dos lençóis e do cobertor. Caio para trás, ajeito a almofada e tento descansar mais uns segundos. Tento.
7h36m
- Bernardo Tomás já estamos a começar mal o dia… ou sais rapidamente dessa cama ou vamos ter consequências, ouviste bem? Rápido, rápido… Rápido era a palavra desta manhã. É uma das da lista. Noutros dias acordo com um “Despacha-te”, “Levanta-te”, ou um “Preguiçoso”, às vezes um “Molengão”. Digamos que tenho sempre uma manhã de sonho. - Filho! - Mãe, eu já vou… - Não é isso, hoje é feriado! - Feriado? – perguntei eu, enquanto me enfiava novamente na cama. Adormeci.
7h47m
- Acabei de desligar a internet, Bernardo. Três vezes que venho aqui ao quarto e fazes de conta que é uma doida qualquer que está a falar contigo. Tens dez minutos para estar à porta de casa e pronto, ouviste bem? Senão para além da internet, é a televisão e a geringonça que compraste… O feriado foi só de olhos fechados. Na verdade, o que aconteceu foi ligeiramente diferente.
7h37m
- Hoje não é feriado? – perguntei eu, enquanto me enfiava novamente na cama. - Por ser o dia da preguiça ou assim uma coisa? Eu vou tomar banho e quando sair – suspirou - é bom que não estejas debaixo dos lençóis. – ameaçou a minha mãe enquanto abria os estores do meu quarto.
7h47m
- Acabei de desligar a internet, Bernardo. Três vezes que venho aqui ao quarto e fazes de conta que é uma doida qualquer que está a falar contigo. Tens dez minutos para estar à porta de casa e pronto, ouviste bem? Senão para além da internet, é a televisão e a geringonça que compraste… A geringonça é a Xbox. Não são poucas as noites em que prometo a mim mesmo que, de manhã, vou levantar-me logo que a Peggy Lee comece a cantar. E bem-disposto. Nunca consegui. No Natal passado a minha mãe, decidida a mudar isso, ofereceu-me este despertador e o seu “Yes, it’s a good day…”. Não foi grande ideia. Uma semana depois, já não suportava aquela maldita canção. Finalmente levanto-me e vou para a casa de banho. Lavo a cara. Tiro, da estante, o frasco da espuma de barbear, ouço o click da tampa ao sair e carrego para tirar a espuma branca. Exagero, como sempre. Espalho pela cara, tiro o enorme excesso da mão e fico pronto para mais uns cortes. Às vezes lembro-me da primeira vez, à escondida dos meus pais. Cortei-me. Muito. Mas valeu a pena para mostrar que já não era um miúdo. Aquela conversa do “quanto mais cedo, depois mais grossa fica e mais vezes tens de fazer” já cheirava a mofo. Depois da barba feita, despi-me e enfiei-me no chuveiro. A água quente começa a sair lentamente e debaixo de água acordo. Só agora acordo.
7h55m
- Bernardo! – a minha mãe a chamar-me. - Estou quase, já saí do chuveiro – gritei eu. Este curto diálogo chegava para a minha mãe perceber que eu me estava a mexer. Mas ela preferiu fazer de outra forma.
7h55m
- Sai! Sai!- a minha mãe acabara de entrar na casa-de-banho. E eu nu. - Oh Bernardo poupa-me a complexos ridículos de adolescentes que não estamos com tempo para isso…
7h55m08s
- Sai! Sai! - Bernardo! - Sai! Sai! A minha mãe saiu. Ou assim eu esperava.
7h55m08s
- Sai! Sai! - Bernardo! - Sai! Sai! A minha mãe não saiu. - Sai! Sai! - Bernardo, já te ouvi, pára com essa gritaria. É só para saberes que já ficaste sem a geringonça. - Sai! Sai! A minha mãe saiu. Depois de tomar banho, fui para o quarto. Tirei da segunda gaveta da mesa-de-cabeceira uns boxers e umas meias; da cómoda uma t-shirt e uma camisa; do roupeiro umas calças de ganga. Depois de vestido, voltei para a casa de banho. Peguei no frasco de gel, apertei e tirei um pouco para a palma da mão esquerda. Espalhei bem pelo cabelo e ajeitei no fim. Estava muito estranho. Peguei rapidamente no chuveiro e do lado de fora lavei novamente a cabeça.
8h9m37s
- Bernardo! – a minha mãe a chamar-me da cozinha – Já são 8h10m… Teria sido suficiente para eu me despachar.
8h9m37s
A porta da casa-de-banho abre-se. - Sempre a mesma menina…o cabelo estava mal era? – a minha mãe com tom de gozo. - Sai! Sai!
8h9m46s
A minha mãe olhou para cima, abanando a cabeça e suspirou. Saiu da casa de banho. Ou não.
8h9m46s
- Podes ficar aí a gritar o tempo todo que vou ficar aqui, aqui mesmo até saíres…sim princesa? Esperei uns segundos. Talvez a pensar no que fazer. - Sai! Sai! A minha mãe saiu. Tirei novamente o frasco de gel, apertei-o e tirei um pouco para a palma da mão esquerda. Espalhei pelo cabelo e ajeitei no fim. Ficou bem. Lavei os dentes e saí da casa-de-banho.
8h16m
Fui ao quarto buscar a mochila. E, como sempre, pergunto-me porque não preparo o material todo no dia anterior. Não encontrava o livro de história. - Bernardo! São quase 8h30m! - Não sei de um livro, estou à procura… - Leva outro! - Grande ideia mãe, brilhante… Continuei à procura. Fui à sala e estava em cima da mesa.
8h21m
- Já aqui vou… - garanti eu à minha mãe. Ela estava à entrada, do lado de fora da porta, com a perna no seu movimento célere. - Sempre o mesmo, Bernardo. Sempre, sempre o mesmo! -disse-me quando cheguei à entrada. - Ainda vamos bem a tempo… - Vamos mas é rápido. Descemos as escadas do prédio e saímos. O carro estava estacionado mesmo à porta. Eu entrei para o lugar do pendura. - Temos de conversar sobre isto depois. Chego sempre à loja atrasada por tua culpa… começa a chamar um táxi, vai de autocarro, com um amigo, faz como quiseres. Amanha se não estiveres pronto às 8h ficas em terra, ouviste vem? - Cuidado que vem aí um… - Tu estás a ouvir o que eu estou a dizer? - Antes de mais amanhã é sábado. - Estamos engraçados…-troçou a minha mãe Saiu do estacionamento e após alguns minutos deixou-me à porta da escola. - Bem que podias começar a vir a pé…até é ridículo vires de carro e empatares-me a vida… - Ridículo era eu vir a pé quando tu vais para a loja à mesma hora… - Só te fazia bem…além do mais… - Adeus mãe – interrompi logo, enquanto abria a porta do carro e saía. - Depois temos de falar! - gritou-me a minha mãe já quando eu estava à entrada da escola. Não respondi.
8h33m
- Always late, Bernardo – disse a professora, mal me abriu a porta. A aula era às 8h. Pedi-lhe desculpa. Sentei-me no fundo da sala, ao lado da Benedita, a rapariga mais bonita da turma. Deu-me um sorriso meigo e cumprimentou-me:
8h33m08s
- Olá Bernardo… Corei. Ela sorriu novamente. - Ficas mesmo muito engraçado quando coras. – elogiou-me ao mesmo tempo que me apertava carinhosamente uma das bochechas. É assim que eu espero um dia começar o meu dia escolar. Ainda não foi hoje.
8h33m08s Sentei-me no fundo da sala, ao lado da Isabel, a rapariga menos interessante da turma. Quilos a mais, borbulhas a mais, simpatia a menos. Disse-lhe olá. Nem virou a cara. Ainda bem. A minha turma é uma colecção de estereótipos. Há a rapariga bonita e misteriosa, a Benedita, a loira convencida, há cromos e nerds, desportistas e artistas. Um gay, também. Dou-me com três ou quatro, os meus amigalhaços, interesso-me por uma, a Benedita. Chamou-me à atenção desde o primeiro momento que a vi. Com uns olhos verdes hipnotizantes, cabelo castanho comprido e uma pele levemente branca, parece saída de um conto de princesas da Disney. Tenta esconder o corpo por entre roupas largas, mas felizes as aulas de educação física que não perdoam. Infelizmente quase nada sei sobre ela. Chegou no ano passado a esta escola, já em Outubro. Apresentou-se à turma numa aula de Português, dizendo apenas o seu nome e a idade. A stora perguntou-lhe de onde veio, ela respondeu que não era de cá, mostrando pouco interesse na conversa. A stora percebeu e não insistiu.
10h
Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm A campainha. Tenho com ela uma relação de amor - ódio. Há aulas em que desespero, em que tudo o que mais desejo é ouvi-la. Há intervalos em que a conversa é tão boa que tudo o que eu quero é que a campainha faça greve. Foi o caso do intervalo do meio da manhã a seguir à aula de inglês.
10h03m
- Então ontem não foste ao Água Benta? – perguntou-me o Rui, com uma cotovelada que dizia mais que a pergunta. O Água Benta é um bar aqui em Viseu. - Não pude, tive de ajudar a minha mãe a fazer as contas da loja – desculpei-me eu. Na verdade só me apeteceu foi enfiar-me na cama e ligar a televisão na RTP2 a ver os Simpsons. A minha mãe tem uma livraria na rua Cónego Martins, na qual passo grande parte do meu tempo. Foi aberta pela primeira vez a 2 de Outubro de 1998, como orgulhosamente indica uma pequena placa verde à direita da entrada, do lado de fora. Tinha eu 6 anos. Lembro-me vagamente desse dia, mas sei perfeitamente que estava muito feliz. Um novo lugar para eu passar o muito tempo livre que tinha, e muitas coisas para eu mexer: a caixa registadora, centenas de livros, canetas, lápis e muitos papéis. E pessoas novas todos os dias com quem conversar. Sempre. - A Benedita estava lá. - Hã? - Sim, é o que ouviste. A Benedita estava lá, no Água Benta. - E o vocalista dos Metallica a acompanhá-la não era? – repostei sarcasticamente. Eu mais do que ninguém sabia como o Rui gostava de inventar. E muito. Às vezes com mau gosto. - João! – chamou o Rui – anda cá. Diz aí ao Bernardo quem estava ontem no Água Benta. - É verdade…a mysterious girl – disse-o abanando os dedos como se de uma personagem de terror se tratasse - e com as suas roupas dois números acima – acrescentou. Gargalhada entre os três. O João, que gosta sempre de pôr umas expressões em inglês no seu discurso, o Rui e o Xavier. - A sério? A Benedita? Que estranho… - comentei eu com alguma indiferença. Por dentro explodia. Nunca tinha contado que tinha uma secreta paixão por ela. A Benedita nunca saía. Nunca. A primeira vez que troquei umas palavras com ela foi exactamente para a convidar para o Água Benta. “Benedita, aparece hoje no Água Benta, ok? Tanto estudo até te faz mal…”. “Não posso”, respondeu-me ela, com a sua voz suave, rematando logo de seguida com um “Fica para a próxima”, antes que eu perguntasse porquê. A Benedita é a melhor aluna da turma. E não se pode dizer que é apenas boa aluna. É brilhante. Digamos que abaixo de 19 é uma nódoa negra no seu percurso académico. Sem exageros.
10h10m
- Ainda trocou umas palavras comigo… - revelou logo o João com o tom de voz de quem sabe que vai provocar curiosidade. - O que é que ela disse? – perguntei eu espontaneamente. - Deu a entender que tu devias avançar – respondeu-me o João com uma leve pancada nas costas - Começou por dizer que eras muito simpático, que tinhas uma cara engraçada… …e assim continuei eu a sonhar com muitos elogios. Na verdade…
10h10m
- Não trocou nem uma palavra com ninguém. Entrou sozinha, esteve sozinha, saiu sozinha. Sentou-se naquela mesa vermelha do fundo, sabes? - Mesa vermelha – disse logo o Xavier, levantando repetidamente as sobrancelhas. Foi nessa mesa que eu conheci a Rute, a minha namorada. Riram-se. - E nem de propósito….aí vem a Rute – avisou-me o João. A Rute era uma rapariga também espantosa, mas não como a Benedita. Simpática e naturalmente bonita, com uns penetrantes olhos castanhos e um cabelo escuro ligeiramente abaixo dos ombros. Era a rapariga perfeita. Raramente discutíamos, namorávamos muito e havia entre nós uma grande ternura. Não havia paixão. Dei-lhe um beijo, e abraçados estávamos preparados para assistir ao resto da conversa.
10h15m
Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm A campainha. Apesar de ser um aviso para o começo de mais uma aula, fiquei contente. Era a aula de História, a minha preferida. Desde pequeno me interessei por tentar descobrir e perceber aquilo que aconteceu antes de eu nascer, o que era também uma razão para eu gostar tanto da Livraria da Minha Mãe. É mesmo este o nome. Era a segunda aula de História deste ano. O ano escolar tinha começado na terça-feira, dia 15 e na última aula ficámo-nos pelas apresentações. “Olá, eu sou a Benedita e tenho dezassete anos” foi a apresentação da Benedita, nem mais um pormenor da sua existência. Não sei se propositadamente, mas conseguia sempre fazer jus ao cognome que lhe atribuiu o João - “The mysterious girl”. Na aula a professora falou da Primeira Guerra Mundial e sobre os acordos de paz subsequentes após o final da Grande Guerra. Mas o que não me saía da cabeça era a voz do Rui – “A Benedita estava lá”.
11h45m
Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
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